Há na cena literária contemporânea um efervescente caminho no qual estão inseridos os
livros de temática espírita; com destaque aos romances mediúnicos. A
denominação “romance mediúnico” surge como tentativa de esclarecer a
peculiaridade de concepção de tais livros. São textos escritos por mãos que não
as do autor. A compreensão de tal sugestão só é possível através de prévia
introdução aos conceitos espíritas, especialmente os que tangem a comunicação
espiritual. Embora o esforço de diferenciação seja justificável, o termo em si,
“romance mediúnico”, não encontra sustentação. Um romance é uma narrativa em
prosa, com base realista, acerca de ações múltiplas de personagens.
Trata-se, então, de uma construção do
real, com referências no mesmo, mas sem compromisso verídico, apenas
verossímil. O que se observa, em boa parte dos recentes lançamentos do “gênero”
mediúnico, são relatos não ficcionais; narrativas que se afirmam espelho de uma
realidade pós-túmulo, a exemplo do que seria o trabalho jornalístico. O
principal objetivo destes textos é transmitir aos encarnados lições do mundo
espiritual. Nesse sentido, ter os pés fincados na realidade, deixando claro não
haver construção de qualquer espécie, transmite credibilidade, fator relevante,
uma vez que os livros são, sobretudo, referência para estudos espíritas. Ponderando
esta característica, e considerando tais relatos como jornalísticos, sem
compromisso poético, literário ou requintes linguísticos, não são, portanto,
romances.
Cidade dos Espíritos
A leitura de Cidade dos Espíritos, livro psicografado pelo médium Robson
Pinheiro, e atribuído ao espírito Ângelo Inácio, serve de exemplo ao
exposto. A obra é responsabilidade da
Casa dos Espíritos, editora associada à Sociedade Espírita Everilda Batista,
detentora dos direitos autorais dos livros publicados por Robson. Logo na capa,
os dizeres “romance mediúnico” dão o tom do conteúdo que irá ser apresentado. O
livro trata da chegada do espírito Ângelo Inácio em uma cidade espiritual
denominada Aruanda, relatando, em primeira pessoa, a trajetória desse espírito,
desde o desencarne até a noção da missão que lhe seria atribuída na dita cidade
espiritual. Ao longo dessa trajetória, Ângelo Inácio registra suas observações.
A proposta de enredo não é das mais complexas, mas encontrou no seu
desenvolvimento diversos problemas de caráter linguístico, bem como outros em
relação à sua concepção.
Aspecto gráfico
Já no aspecto gráfico a obra chama
atenção. São 459 páginas, ignorando-se cinco folhas sem numeração, e o índice. O
grande número de páginas sugere uma narrativa detalhista e de nuances
múltiplas, o que não se comprovou na leitura. A diagramação também exige olhar
atento. Há requinte e cuidado na apresentação visual, com detalhes como
manuscritos do texto original nas contracapas, e um jogo de cores entre o verde
e o preto de bastante destaque. Certamente um livro que conquista o olhar nas
prateleiras de livrarias, razão que pode explicar o esmero gráfico.
Cada capítulo inicia com uma página
em preto para o número da seção correspondente, e outra para o título da mesma.
Na página seguinte, uma letra capitular ocupa toda a dimensão da folha. Os
recursos têm função duvidosa. Na verdade, beiram o mau gosto, e contrastam com
a seriedade que o próprio livro exige de seus leitores.
Nas últimas páginas, pós-narrativa, a
obra traz um breve perfil do médium Robson Pinheiro, a quem chama de “autor”. A
ideia de que Robson seria o autor dos livros nega o princípio de que os mesmos são
fruto do fenômeno psicográfico. De fato, autor é aquele que compõe a narrativa
de seu próprio intelecto, papel correspondente ao do dito espírito Ângelo Inácio.
A apresentação do perfil de Robson está relacionada ao apelo publicitário em
torno de sua figura, algo também observado em outros momentos de Cidade dos Espíritos, quando do uso de auto-citações
e auto-referências, estratégias que visam à divulgação de seus livros.
Ângelo Inácio
A
figura de Ângelo Inácio é central em todo o livro. Uma primeira análise sobre o
protagonista já intriga. Trata-se de um jornalista e escritor, que preferiu
preservar sua verdadeira identidade. Ao longo do livro, vê-se que nomes de personalidades
terrenas são revelados sem pudor, e na maioria das vezes sem cuidado de
apresentação. Por que se preservar e expor os outros?
A função de repórter lhe serve como
caricatura, e a todo instante Ângelo parece desenhar no texto a personalidade
tida como estereótipo desta profissão. Apresenta-se debochado, de fala solta, irônico,
fazendo anedotas e cheio de perguntas. Demonstra uma vontade de se despir do
caráter célebre de outros livros de temática espírita, tentando parecer mais
“humano” que divino, muito embora seja piegas.
Em vários momentos, a personalidade
idealizada de Inácio se mostra sem função, perdida em meio ao conteúdo. Diz
algo sem nexo e de fraco apelo cômico, e em seguida descreve uma mensagem
altamente cerebral e densa. Sua própria maneira de se expressar reflete esta
incoerência.
Suas falas são confusas, mesclando
palavras coloquiais com outras de raro uso. Quer ser irreverente, mas não
consegue, amarrado que está na ideia de transmitir “verdades” através da
narrativa. Suas piadas são fracas e sem inspiração, e a tradução de seus
sentimentos não comove ou inspira. Enfim, o personagem Inácio não conquista e
não interessa; em momentos parece tolo, em outros parece contemplativo, e nos
demais apenas serve como deixa para falas consistentes de outros personagens.
Sua interação com outros agentes da
história é estranha e mal explicada. No enredo, após o desencarne, Ângelo é
convocado à Aruanda na qual toma conhecimento de uma tarefa que espíritos de
alto grau têm para ele. Sua escolha se deve a sua experiência terrena enquanto
escritor e jornalista. Mas quem é ele? Quais são suas verdadeiras experiências?
A figura da filha, Maria, aparece como um laço sentimental, que tenta exercer este
papel de âncora da história de Ângelo, mas é fraco, quase imperceptível. Como
crer em um personagem que não se conhece, e não é apresentado? Impossível.
Talvez por isso não tenha apelo.
Entende-se que o livro é uma espécie
de continuação de outros do mesmo autor, e que, portanto, outras de suas obras apresentem
mais informações a seu respeito. Ao mesmo tempo, o fato de Cidade dos Espíritos se tratar do início da trajetória espiritual do
protagonista “Ângelo Inácio”, exige que tal personagem seja construído e
apresentado, se não logo nos primeiros capítulos, no decorrer da narrativa. Do
contrário, teríamos um livro de ninguém, narrado por ninguém. Um escritor ou
jornalista – e sem dúvida um jornalista – saberia disso.
Robson Pinheiro
Exercendo o papel de intermediário
entre a mente geradora do texto e o registro físico, poderia se imaginar que a
figura de Robson estivesse inerte ao longo do livro. Não é o que se verifica. O
texto traz diversas inserções sobre o médium, situações nas quais não é
apresentado, ao mesmo tempo em que se faz questão de destacar sua figura, e
mesmo traços de sua personalidade. Acaba ele, Robson Pinheiro, tornando-se mais
um personagem do livro. Não chega a ser determinante para a avaliação do mesmo,
mas causa estranheza.
O principio básico da comunicação mediúnica
é não interferir na mensagem. Ter inserido Robson no contexto da história, sem
uma função, ou papel dedicado ao entendimento do enredo, soa narcísico, cabendo
entender se a atitude partiu do médium, ou do autor da mensagem; imaginando
tratarem-se de pessoas diferentes.
Narrativa
e conteúdo
O autor propõe um relato sobre suas
experiências no plano espiritual, utilizando-se de linguagem por vezes
coloquial, em uma tentativa de amenizar o tom grave que os discursos de
temática espírita assumem, quando tratam das perspectivas do comportamento e
das diretrizes do além. Traduzindo a intenção do autor de maneira alegórica,
seria como se um “humano” quisesse contar como são as coisas do outro lado da
vida.
Ao longo do livro, essa tentativa de discurso se trai, denunciando
incoerência e falta de habilidade do autor em conciliar a seriedade do conteúdo
proposto, com sua expectativa de diálogo leve e irreverente com o leitor. Em
vários momentos do texto, a junção desses dois aspectos se mostra incompatível,
ou pelo menos mal feita. São piadas ou brincadeiras superficiais e sem gancho,
seguidas de páginas inteiras de falas rebuscadas a respeito de conceitos densos.
O primeiro capítulo, especialmente
seu início, serve de exemplo. O enredo começa com Ângelo Inácio em seu próprio velório,
percebendo-se fora do corpo, e lidando em tom jocoso com a situação, ao
observar parentes e amigos a sua volta. A cena lembra a novela “A morte e a
morte de Quincas Berro D’água”, de Jorge Amado. Em uma parte deste célebre
romancete, Quincas, personagem principal, brinca com a situação de ter seu
corpo velado pela família e pelos amigos de farra e vagabundagem. Trata-se de
uma cena clichê, que o próprio Amado, em outros de seus romances do realismo
fantástico, reutiliza.
Voltando à Cidade dos Espíritos, a cena inicial é interrompida pela chegada de
Jamar, descrito pelo autor como um guardião. Jamar pretende levar o espírito de
Ângelo até Aruanda. No que diz respeito à narrativa, a cena exemplifica o
impasse entre humor e severidade, representados pelo posicionamento de Inácio e
Jamar ao longo da cena. As dificuldades do autor são nítidas em lidar com a
situação, e consequentemente foram repassadas ao texto, tornando a leitura
difícil.
Livros com a prerrogativa espírita,
como Cidade dos Espíritos, lidam com
uma dificuldade a mais na sua concepção, que diz respeito ao conteúdo de suas
histórias. Este não pode trair os preceitos da doutrina, e deve estar sempre de
acordo com as codificações de Kardec. Por isso, ao se observar o conteúdo de Cidade dos Espíritos, é possível, por
exemplo, questionar itens como a transição do espírito Inácio.
Um espírito do qual não se conhece
o passado, e que demonstra ignorância acerca dos domínios do bem e da
espiritualidade, além de hábitos pejorativos, simplesmente “sair” do corpo
físico direto para uma cidade espiritual de tamanha evolução, como descrito no
livro, soa estranho e incoerente.
Ainda sobre a narrativa, outros
aspectos complicam a leitura da obra em questão, tornando-a truncada e
cansativa. Há uma preocupação excessiva do autor em descrever todos os detalhes
por ele observados. Dessas observações detalhistas, paradoxalmente, a maioria
não colabora para a construção do cenário da história. O que realmente fazem é
tornar o texto inchado, repetitivo, colaborando para o desvio de rota da linha
guia do enredo. Como exemplo, cita-se as vestimentas dos personagens. São
descritos com detalhes todas as roupas e paramentos dos diversos personagens, com
tal afinco e minimalismo, que causa estranheza e leva a se questionar com qual
finalidade.
Mesmo pela ótica do conteúdo espiritual
tal postura não vê lastro. Pouco importa a roupa que um espírito “utiliza” na
erraticidade; há outros pontos deveras mais relevantes a serem observados. Existem
sim aspectos culturais implícitos no que diz respeito à vestimenta de um ou
outro espírito descrito no texto, ainda sim parece ter a cultura tomado
proporções a quem das que lhe são peculiares no contexto espiritual.
Outro exemplo está em determinada
passagem da narrativa na qual Inácio narra como passou horas escolhendo uma
roupa nas lojas disponíveis de Aruanda. A passagem é desnecessária, chata,
cansativa e desconexa, tanto que uma pergunta paira imperativa: Por quê? Se a
evolução passa pelo desapego, não seria a primeira lição a se ensinar a um
espírito, a quem se destinará missão dita tão importante, livrar-se de amarra
tão mesquinha quanto “qual roupa eu usarei”?
O que se observa na leitura de Cidade dos Espíritos são problemas
narrativos sucessivos. Frases mal construídas, texto emperrado, de difícil
leitura, poeticamente pobre, cansativo e sem fluxo. É comum ver dificuldades
semelhantes em outros “romances espíritas”, já que na maioria dos casos, os
espíritos que ali se comunicam não são escritores, e preocupam-se em transmitir
uma mensagem verídica e densa em conteúdo, e nem tanto com qualidade estética.
Os livros de André Luiz, através do
médium Chico Xavier, são exemplo. Ricos em conteúdo, os livros têm como
característica uma linguagem rebuscada que dificulta a leitura. André foi
médico, sua mensagem é rica, mas seu texto é técnico e formal. No caso de
Ângelo Inácio, tratando-se de escritor e jornalista, esperava-se uma evolução
narrativa, o que parece não ter ocorrido, ainda que se verifique um esforço
nesse sentido.
Verdades
ou mentiras?
Avaliar uma mensagem espiritual como a de
Cidade dos Espíritos sempre é missão
delicada e ingrata. Não se quer colocar em dúvida os dons espirituais de Robson
Pinheiro, nem tão pouco a credibilidade do trabalho que realiza junto ao
espírito Ângelo Inácio. Ainda sim, o conteúdo trazido por Cidade dos Espíritos suscita diversas indagações.
São extraterrestres interferindo
diretamente na política mundial. Guardiões de Aruanda travando luta intensa com
espíritos mal intencionados durante a Guerra do Golfo, 1992, a qual se credita
justamente a tais influências. Tudo acompanhado de perto por um espírito recém
chegado, a quem é dada a missão de se preparar por 10 anos até realizar a
tarefa de narrar o que viu. Isso aliado a diversos conteúdos polêmicos sobre a
umbanda e o candomblé, que parecem serem ditos por quem não os conhece de fato.
São várias as descrições que causam inquietação ao olhar atento.
Ao longo do texto, o autor ressalta o
caráter inovador das informações ali trazidas, dizendo ser o conteúdo de
compreensão restrita, uma vez que nem todos estão preparados para entendê-lo.
Defender-se atrás de tal argumento faz com que toda e qualquer afirmação seja
possível. O que eu digo é a verdade e se não acredita é porque não está
preparado para aceitá-la. Para um texto que propõe de forma tão direta e
confiante visões diferenciadas sobre o mundo espiritual é preciso mais que esse
argumento para gerar credibilidade.
Narrativamente os problemas se acumulam. A
falta de conectivos entre as passagens resulta em um texto sem amarras, sem
liga. Há valor, e não se discute a iniciativa e boa intenção envolvida na
confecção da obra. Mas é preciso se avaliar com cuidado as produções que se
destinam a verdade, como as de cunho espiritual. Assumir a voz da
espiritualidade exige muita responsabilidade. Os livros de Robson (ou de
Inácio) são fenômenos de venda, brecha interessante para a divulgação benéfica
de conceitos tão bonitos relativos à vida. Mas isso não pode ser feito a
qualquer custo, nem tão pouco de qualquer maneira.