Em seu livro, O Mistério do Samba, Hermano Vianna cita uma noitada que reuniu intelectuais interessados na construção de uma identidade nacional (Gilberto Freyre era um deles), e personagens desta tal cultura local, entre eles Pixinguinha e Donga, o último autor do considerado primeiro samba (Pelo Telefone, de 1916). Já em Pelo Telefone, Donga narrava a realidade do morro, na qual “o chefe da polícia pelo telefone mandou lhe chamar”. Na época, ser sambista era sinônimo de vadiagem, e a voz do morro eram os vadios. A partir do encontro narrado por Vianna, o samba se firmou como tradutor do cotidiano urbano brasileiro, com temáticas relacionadas às realidades vividas nos morros e favelas das grandes cidades, além da expressão da boemia efervescente da época. Marginalizado em primeiro momento, a partir da década de 30 passa a ganhar espaço entre a intelectualidade brasileira, com a afirmação da cultura nacional e a elevação dos compositores de samba à figura de mestres e, posteriormente mitos. É nesse ínterim que a ideia de samba como identidade nacional se consolida.
Era de se esperar que o samba, com maior aceitação e portas abertas para novas realidades, se diversificasse, alimentando-se de outras inspirações, e direcionando-se para outros grupos sociais. A diversificação é uma das características principais do momento pós-moderno, que entre outras consequências, traz a diluição dos argumentos reais da manifestação artística. O samba que desceu o morro e ganhou o asfalto, expandiu-se, diferenciou-se e, plural, perdeu sua identificação com a realidade da massa, outrora tema principal. Não foi abandonado pelos guetos, mas passou a ser consumido e produzido com outro intuito, baseado no entretenimento.
Podem-se enumerar diversos fatores, além da pós-modernidade (e que podem estar até incluídos nela), que contribuíram para este “esvaziamento” ideológico e temático do samba, e que resultaram na sua substituição por outras expressões musicais, dentre as quais cabe ressaltar o rap.
Carente de uma forma artística que de fato constituísse aura, com engajamento e ideologia, a periferia encontrou no rap, oriundo de influências norte-americanas, uma maneira de se fazer ouvir. O rap, sigla em inglês que significa ritmo e poesia, é um dos pilares da cultura Hip Hop, nascida nos guetos americanos, com o sinônimo de “cultura de rua”. No rap, tanto a temática, quanto a sua composição estética estão impregnadas de asfalto e demais signos da cidade, em verossimilhança com a sociedade metropolitana, veloz, direta, neológica, desigual e globalizada.
Esta postura assumida por esse novo símbolo cultural se difere esteticamente do samba engajado de outrora, quando o sambista no morro, violão no colo, discorria com lirismo e melodia, sobre a realidade que o cercava. O samba destes tempos, parafraseando Ernesto Che Guevara, endurecia sem perder a ternura.
Cartola, um dos mestres dessa música popular, ia além, ressaltando em suas músicas uma visão improvável da realidade de exclusão, a do orgulho, apoiado nas belas paisagens do morro e da felicidade efervescente de seu povo. Em Alvorada, canção gravada em 1974, Cartola diz: “alvorada lá no morro que beleza, ninguém chora, não há tristeza, ninguém sente dissabor”. Este romantismo se vê na maioria das composições da época, que refletiam sobre os panoramas de opressão e desigualdade social, sem que a violência transparecesse nas letras e nas melodias da música. No rap o sombreado romântico foi deixado de lado, substituídos violão e sentimentalismo, por batidas eletrônicas e rimas de efeito. A música apresenta-se violenta, feroz, para que transmita eficiente, a própria violência sofrida por aqueles a quem pretende representar, assim como sua indignação perante a exclusão e demais maleficidades sociais. Seus versos, ritmos secos, e intérpretes (Mc’s) são como balas de revólveres, prontas para o revide ao sofrimento causado. Mano Brown, dos Racionais Mc’s, banda representante deste segmento no Brasil e idolatrada pelas periferias, fala em um verso de sua música, Capítulo 4 Versículo 3, sobre esta condição metafórica: “Meus estilo é pesado, e faz tremer o chão, minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição.” Não só o enfraquecimento do samba como voz da massa, justifica a ascensão desta nova linguagem. Mudanças sofridas pela sociedade, em termos econômicos e de explosão urbana, também favoreceram seu fortalecimento. O jovem do gueto acorda bombardeado pela ferocidade da favela, pela correria do asfalto, e a urgência de uma vida desigual. Em meio a essa condição, imaginar no violão e no cavaquinho, instrumentos para expor sua indignação, pressupõe romantismo que já não se explica, sendo mais rápido e fácil, pegar um microfone e começar a rimar. Com violão no colo, o jovem se sente caçador de arco e flecha, em tempos de metralhadoras automáticas, tornando-se mais lógico então, tomar o rap como “arma”, e o samba como distração.