segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Família, ancestralidade, legado e o engenho da alma


A família é o engenho da alma. Tal como um tecido raro fiado em roca de gerações. Uma soma das virtudes e dos desvios de cada um, formando a luz que endossa a pele. Minha alma é minha família, meu povo, meu sangue. Desde sempre, desde antes. Até hoje, até nunca. 
Família é mais do que se conta, é ancestralidade. Um valor tão insolúvel e inegável, que é base das mais ricas tradições de fé, aqui fecundadas na terra. Lembro e cito o Candomblé. Diversificado no rito e nas origens, mas comumente sustentado pela força da ancestralidade. Da forma oral de trânsito do conhecimento, aos seus deuses que guardam, zelam e vigiam. Tudo construído sobre a esteira do tempo, entre a sabedoria dos mais antigos, e a energia dos mais moços, cada qual com sua responsabilidade. 
 Nessa relação, aos donos da sabedoria cabe guiar os jovens, educar-lhes o ímpeto, e mostrar-lhes a direção. Aos moços sustentar a bandeira, receber com carinho o legado, e transmiti-lo com orgulho. Dessa forma, cada qual cumprindo seu papel, se constrói a árvore da família, dos ancestrais, o “de onde viemos” com olhar no “para onde vamos”.
Cada uma em sua época, e nunca fora dela, as folhas esmaecem e recaem ao solo, para recomeçar. Outras novas e tenras nascem ao longo dos galhos, e a vida segue. A roca do tempo não para. O legado fica, com suas memórias e sabedorias, a serem levadas adiante. E assim, geração a geração, nos fazemos história, assim nos fazemos vida. 





Ps: Esse texto é dedicado a memória de Miraci Pantaleão, Tia Mira, mimo de Oxum, carinho de Oxóssi, afilhada da Jurema, meu sangue, meu povo, minha família, agora folha nova, verde e tenra nas cidades do céu. 

sexta-feira, 3 de julho de 2015

O que é o futebol?

O futebol é técnica. É! Não “era”. É! Esqueçam essa de futebol moderno, todo mundo marca, intensidade, jogador importante taticamente, atacante que acompanha lateral, jogador carregador de piano e outras balelas mais. Subterfúgios, nada mais, para justificar a ausência de intimidade com a bola. Intimidade que às vezes vem de berço, aos cuidados do talento, mas que se pode adquirir com esforço e repetição, através da técnica. 
Talento é uma aptidão inata, um presente, uma dádiva, quem sabe uma missão. Em termos de futebol, a capacidade natural de ser irônico com os pés. Pode ser lapidado, mas não pode e não deve ser domado. Meu primo Haroldinho, com 15 anos, chutava a bola para o alto, em altura de ganhar o leitão, e depois a matava no peito, como se ali houvesse uma almofada. A bichinha rolava e caia macia no chão, não sem que antes ele dissesse a mim “vem pegar”, me aplicando um rolinho na sequência. Ninguém o ensinou. Nasceu sabendo. Fazia aquilo com a naturalidade de quem respira, anda ou fala. No final da brincadeira, chegava até mim e paciente tentava me explicar como fazer. “Não fica com medo da bola, relaxa o corpo quando ela chegar a você, como se você fosse um colchão, não uma parede”. Eu não tinha e não tenho talento, e ele se esforçava para me ensinar a técnica. 
Uma vez, assistindo a uma reportagem sobre Elias, volante da seleção, ouvi o depoimento de um antigo técnico do jogador, na várzea, dizendo o porquê de ter dado a ele uma chance. Ele disse que havia ido acompanhar um campeonato amador. O campo era de terra, esburacado, ruim. O jogo estava nas mesmas condições do campo, e ele já ia desistindo, quando o treinador de um dos times fez uma substituição e colocou Elias no campo. Franzino, magro, pequeno para a idade. Na primeira bola, o zagueiro adversário deu um balão para o alto fazendo a bola parar no meio campo. Elias estava por ali e o adversário se preparou para ganhar de cabeça. Quando a bola chegou, Elias não pulou, deu um passo para trás, matou a bola na ponta da chuteira, fez o giro e carregou para o ataque. O olheiro então disse: “ali eu vi um jogador”. É isso! Isso é um jogador! Técnica!
 Enfim, descrevo isso para dizer que a qualidade com a bola ainda sobrepuja qualquer outra característica que possam ter atribuído ao esporte. O segundo gol do Peru, na disputa pelo terceiro lugar da Copa América contra o Paraguai, foi uma pintura. Carrillo, camisa 18 do Peru, dominou uma bola parecida com a descrição de Elias, e ali, naquele domínio, e se não fosse aquele domínio, não haveria o gol. O giro, a fila, a velocidade, o passe correto na abertura na ponta, o gol de Guerrero. Tudo a mercê da técnica, e por isso, tão bonito. Bonito como deve ser o futebol e a sua essência. Bonito como era ver Haroldinho e seu talento natural. Saudade desse futebol! Saudade Haroldinho!