sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

O fetiche na primeira e na nova Umbanda

2 -

A primeira Umbanda e o receio do fetiche
       A Umbanda são muitas. A matriz geradora dessa religião é a mistura, e como mistura, sem referência ortodoxa ou codificação, foi natural que se multiplicasse de maneira aleatória, criando ritos dentro do rito. Ainda assim, é possível apontar algumas características comuns que ao serem problematizadas ajudam a entender o processo de acolhimento de médiuns, bem como de frequentadores comuns.
       No caso do médium, já dissemos sobre as matrizes espirituais e o chamado da mediunidade, que lhe atribuem necessidade a ser saciada ali, em laço emotivo, simpático, não racional.  No que diz respeito ao frequentador paciente, costumeiramente chamado de “assistente” ou no todo de “assistência”, essa empatia emocional também é recorrente, embora menos intensa, e deambulando entre a esfera do fenômeno e do misticismo. 
        Resgatando processos rituais comuns as diversas Umbandas, vemos como essa roda se desenvolveu, e como hoje é viciosa. Já era uma preocupação dos mentores espirituais que conceberam essa religião desde a sua primeira sessão, por assim dizer. Nos relatos colhidos de Zélio Fernandino de Moraes, tido historicamente como o médium pelo qual se deu a abertura da primeira casa de Umbanda, vemos o cuidado demonstrado com a questão simbólica, bem como o temor de que o simbolismo exacerbado desviasse o trabalho pelo fetiche. Isso nos idos 1908, ano que em que se documenta a primeira sessão. 
       Na casa fundada por Zélio, os cânticos eram estritamente “acapella”, até as palmas eram restritas. Não havia imagens, os médiuns se colocavam de branco, e o uso de símbolos por eles era proibido. Pretos-velhos e caboclos eram os responsáveis pelos atendimentos, sendo linhas como a de Exú – por sua conotação à época – barradas, e relegadas a raríssimos eventos. 
       Manifestava-se através de Zélio a preocupação dos mentores com as paixões que o simbolismo alimenta, tendo como consequência a alienação. Essa preocupação aliada ao histórico de Zélio, de família Kardecista, fez nascer a Umbanda “branca”, uma matriz que hoje com extrema raridade se encontra.
          Os médiuns que procuravam a Umbanda Branca eram em geral aqueles que detinham mediunidades de fenômeno físico, especialmente a incorporação, e que não eram aceitos em outras rodas. Ali foram atraídos pela possibilidade de darem vazão a essas mediunidades, e pela afinidade com o método simples, sem demandas de conhecimento prévio; apenas compromisso e responsabilidade em relação aos horários e às ordens do seu regente. 
         O cenário propunha, em razão da origem diversificada dos médiuns, antagonismo em relação ao trabalho proposto pela primeira Umbanda. Isso de fato não chegou a acontecer de maneira expressiva, pois uma característica muito comum aos espíritos trabalhadores de Umbanda é sua adaptação ao meio, capítulo a parte a ser tratado mais adiante. 
         Por sua vez, a assistência que chegava até essa primeira Umbanda era atraída também pela simplicidade do processo, mas, sobretudo por sua oralidade, e pelo seu conteúdo fenomenológico. O apelo da Umbanda era popular, voltado para gente muito simples, sem educação formal, periféricas, que ali buscavam ajuda na esperança de cura, ou de conselho, de emprego, resolver-se amorosamente, de sofrimento, ajuda psicológica e todo tipo de dificuldade aos quais eram legadas. 
        A possibilidade de ajoelhar-se diante de um espírito, e ali obter de forma simples e direta a cura de uma enfermidade, era sem dúvida atraente. Não havia cobranças, nem em dinheiro, nem moral, tudo se fazia através de uma caridade cega, e por fenômenos físicos manifestos, claros, objetivos, encantadores.  

As novas umbandas e o fetiche ritual
          Tal como um feixe de luz que ao perpassar um prisma se decompõe em cores, a Primeira Umbanda (Branca) se decompôs em outras tantas, a partir do caráter dos que assumiram suas próprias casas de trabalho. A ausência de um livro codificador e a gênese mestiça do culto possibilitou que isso acontecesse, sem que se perdesse o selo umbandista. Com o passar dos anos, o número de casas cresceu exponencialmente, sendo todas tidas como de Umbanda, ainda que com características diferentes entre si.
        Dentro desse rol, podemos – a fim de entender de forma didática o processo - classificar essas casas de acordo com a proximidade maior com determinado tipo de culto gerador. Sabemos que a Umbanda teve como semente a mistura de três segmentos maiores. O Catolicismo, presente especialmente na figura dos santos católicos.  O Candomblé, esse figura importante em toda parte ritual, sendo base para o desenvolvimento das reuniões, e influência direta na forma de manifestação dos mentores. E o Espiritismo, que por sua vez veio a cargo com as leis espirituais, inicialmente tidas com esmero na Umbanda Branca. 
            Esses três formaram o tripé maior do que se chamou de Umbanda, sem ignorar que outras culturas menores, como os ritos ameríndios e o misticismo foram depois também sendo incorporados, formando uma matriz múltipla e extremamente simbólica.        Pensando apenas nos três principais pilares, podemos dizer que de acordo com a proximidade maior com um deles, as casas de Umbanda assumiram características próprias, que as diferenciam entre si.
          Chamaremos de Umbanda Branca aquela que mantém maior proximidade com os ensinamentos Kardecistas, conservando dentro de sua organização uma estrutura baseada nas disciplinas das mesas brancas. Às casas sob maior influência católica, chamaremos de Umbanda de Reis, sendo observado nestas o papel primordial do sincretismo, mantendo datas e rituais próximos à agenda Católica, com tons mais brandos de cânticos, e linhas de trabalho rígidas. E por fim, às casas com forte influência do Candomblé, chamaremos de Umbanda de Caboclo. Nessas, os ritmos são fortes, há a presença dos tambores rituais similares aos do Candomblé, bem como a forma de manifestação, com paramentos, símbolos, danças, comidas, o que se estende também ao trabalho em si. 
         Em capítulo oportuno, vamos pormenorizar essa divisão, sendo por hora importante apenas entender que, como característica comum, todas essas Umbandas são religiosamente cristãs. Além disso, é preciso saber que a finalidade da Umbanda, independente de sua linhagem – consideramos essa divisão como uma linhagem cultural assumida consciente ou inconscientemente – é a caridade, fundamento único de sua criação. Posteriormente a essas três linhagens que serão usadas como exemplo aqui, surgiu uma quarta, que atualmente está mais em voga que as demais, e em franco crescimento, a Umbanda Mística, sobre a qual debruçaremos mais tarde. 
         Cada uma dessas novas Umbandas desenvolveu seu culto sobre a perspectiva passional, tendo como referência o sentimento, sua verdade interior, aquilo que lhe aprazia e tocava o coração. Com isso, criaram fetiches próprios, que atraíam médiuns e visitantes, formando seu ciclo. Alguns desses artifícios são comuns, outros peculiares a cada linhagem.
         Uma pessoa que chega a Umbanda como visitante tem como primeiro diferencial a possibilidade de conversar diretamente com um espírito desencarnado, ali colocado como mentor, através de um processo mediúnico de incorporação. Esse processo é comum a todas as Umbandas, sendo possível dizer que o fenômeno da incorporação foi, e ainda é, o primeiro fator de diferenciação da Umbanda de demais religiões. Mesmo no Candomblé, onde a manifestação acontece de forma direta, não é possível se comunicar verbalmente com os espíritos ali manifestos, sendo resguardado apenas observar, cantar, aplaudir, e comungar de sua energia através das comidas e bebidas. 
        A incorporação é tão importante quanto perigosa. Sendo ela a via de trabalho mais comum dos templos de Umbanda, é natural que os médiuns que ali se colocam esperem fazer parte diretamente disso, enquanto a assistência espera respostas tão diretas quanto. O ciclo é vicioso, perigoso, e em determinados momentos cruel. Uma armadilha pronta para o erro. As pessoas estão ali pelo fenômeno, os médiuns ali para reproduzi-lo, sem o amparo de doutrina, a falha é recorrente. 
       Um segundo elemento ritual que age na captura emocional dos freqüentadores é a música. Como elemento cultural, a música tem em si um poder de penetração considerável na transmissão de mensagens. Na Umbanda, é o principal meio de educação, sendo as cantigas entoadas ao longo do culto carregadas de mensagens e sabedorias próprias da religião. 
         A partir do processo de diversificação da Umbanda, a música agregou outro valor, o de manutenção da expectativa dos assistentes, bem como a captura de sua atenção. Os ritmos quentes dos tambores na Umbanda de Caboclo, por exemplo, exploram a musicalidade da assistência e do corpo mediúnico, cativando-os a acompanharem os cânticos, e se interessarem pelo que acontece, mesmo que isso não necessariamente represente entender o que se está ouvindo e cantando. O fetiche da musicalidade das reuniões, que já em primeiro momento preocupava Zélio e os fundadores da nova seara, é uma realidade inquietante. 
        Não se nega o favorecimento que o ritmo tem em relação ao trabalho e seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo, observam-se os ritmos e cânticos cada vez menos como parte litúrgica, e mais como atração. O discernimento correto de sua função, ainda que não obstante à alegria e explosão de sentimentos que provoca, faria parte de uma doutrina, da qual estamos aqui relatando ausente e necessária.
          No mesmo sentido que a música e a incorporação, um terceiro fator pode ser elencado como fetiche da Nova Umbanda. O simbolismo/misticismo exacerbado. O sincretismo já era uma realidade na Primeira Umbanda. A relação análoga entre santos católicos e deuses africanos era uma menção comum, embora não houvesse a exploração de imagens. Na Nova Umbanda, isso se modificou por completo, sendo característica dos terreiros a presença maciça em seus altares de imagens e símbolos generalistas. Essa massa simbólica está também na linguagem, nos ritos, no trabalho, no atendimento, na vestimenta, no comportamento dos médiuns e em tudo que os rodeia. 
         É sem dúvida fascinante o modo como isso se reúne em um único lugar, e como se convive com essa atmosfera de sagrado em cada detalhe, mas ao mesmo tempo é evidentemente um perigo. Qual a fronteira entre o sagrado e o mistificado? Na Umbanda, ela é tênue. O simbolismo em cada detalhe conquista e força a uma consciência ampliada e de vibração respeitosa. Mas ao fim, nota-se que esse instrumento de poder acaba por desviar o conteúdo verdadeiro do trabalho.
          A investigação dessas relações entre a Umbanda e aqueles que a ela alcançam é fundamental para a sustentação dessa religião. Quanto mais afastar de si a suspeição do espetáculo, mais fortificada em seu alicerce de caridade, amor e fé ela estará. Para tanto, educação, disciplina e doutrina devem ser pilares na formação do seu corpo, bem como na relação com os assistentes. Do contrário, a fantasia substitui a verdade e o espetáculo segue tentando a fé. 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Umbanda: mediunidade, acolhimento e iniciação

1 -

Sensibilidade à priori do verbo

        A mediunidade é uma esfera da potência humana, uma extensão de sua inteligência racional e emocional, que se desdobra sobre sua percepção do universo físico e além. É comum a todos, mas ferramenta primeira do médium, de maneira que está dedicada ao que ele determina, sendo primordial dizer que sua finalidade correta é a caridade. À cada um, distintamente, a mediunidade convoca, por um fenômeno ou por um acaso, que não coube explicação dentro do que até então se tinha sabido, e por assim dizer, desperta para uma nova gama da vida.
       Tão diversificadas quanto a cultura, as matrizes espirituais que definem a alma são responsáveis por apontar a direção do acolhimento espiritual a partir do despertar, aproximando o trabalhador do caminho mais afim.
        Os médiuns que se aproximam dá Umbanda, recebem esse chamado da mediunidade de forma essencialmente sensorial, respondendo a matrizes de apelo emocional, de natureza não racional, mas nem por isso menos intensa. Ao chegar à Umbanda, o médium entende e aceita seu caminho não pelo verbo, mas pelo arrepio.
       A explicação para esse método de acolhimento pode ser encontrada na origem dos cultos umbandistas. Já nos seus primeiros anos, instituindo-se como alternativa de trabalho espiritual, a Umbanda mostrou-se aberta e receptiva a médiuns das mais variadas nuances. As cobranças em termos de preparação, ciência e respaldo teórico eram deixadas de lado, a fim de abraçar os até então excluídos de esferas espirituais de cunho mais racional, baseadas em leituras e interpretações, tal como o espiritismo de Kardec.
      A Umbanda era o trabalho, e como trabalho, exigia apenas compromisso e verdade, sendo a verdade avaliada pelo fenômeno e sua intensidade. Ainda que esses parâmetros tenham sofrido mudanças ao longo do tempo, acabam por ainda ser a referência para a aceitação do médium no círculo de Umbanda e suas derivações.

Doutrina e sensibilidade, um desafio da nova Umbanda
          A mediunidade se tornou uma questão para mim aos nove anos. Pequenos fenômenos me aconteceram, e inquieto procurei entendê-los, primeiro sozinho, depois com a ajuda de mentores espirituais. Nessa época, vivia com minha avó, com quem passei tempos aprendendo coisas que não sabia o porquê. Ela foi a primeira a me chamar de “médium de berço”, conceito paradoxal, já que todos os médiuns são nascidos assim, mas que na Umbanda e afins significa um despertar prematuro da mediunidade.
      Minha avó era uma médium de fenômenos, filha de Iansã, explosiva, mas com sensibilidade aguçada e grande abertura mística. Aos nove, me falava de ervas para banhos, de orações, de magias antigas, chás curativos, simpatias, cristais e todo tipo de efeito elementar comum a esse universo umbandista. Curiosamente, apesar de discorrer sobre todos esses temas, nunca me falou propriamente sobre a Umbanda, e raramente citou entidades espirituais.
       Tia Maria era um exemplo do médium formado por sua “sensorialidade”, dentro dos domínios da Umbanda, mas lapidado pelo fenômeno e não pela razão. Para ela tudo se baseava na verdade do que sentia, e não nos desígnios dogmáticos da religião, até porque, o em se tratando de Umbanda, havia com ainda há dificuldade até de definição do gênese. A Umbanda era um lugar onde outrora trabalhou, mas que não necessariamente a continha.  Poderia, se quisesse, abrir para si uma tenda, e ali exercer atividades espirituais através de suas mediunidades, sem que fosse necessariamente classificada pelo que nos esforçamos a chamar de Umbanda.
        De certa forma, quando me educava na sabedoria dos elementos, sem me incitar ao domínio religioso, tentava me dizer que que tal sensibilidade vem à priori da religião, e sem dúvida, é o que se percebe hoje nas mais variadas casas umbandistas. A Umbanda quis que fosse assim, e hoje tenta lidar com as consequências desse método.
        Percebeu tardiamente que o trabalho espiritual era sim necessário, mas que os médiuns precisavam de doutrina, já que o império do sensível compreende com facilidade a farsa mística e moral. O conhecimento sobre si, o estudo e a racionalização de suas tarefas, esbarram na construção histórica de uma religião fenomenológica por natureza, de modo que tal conciliação é um dos grandes desafios que lhe aguardam.
      Lembro quando aos 11 anos repousei meus joelhos frente a uma sábia preta – velha, desejoso de iniciar minha trajetória na Umbanda em sua casa. Ela, muito carinhosa e ao mesmo tempo enérgica, disse que me aceitaria fazendo apenas duas exigências: responsabilidade e compromisso. Agregado a esses dois pilares fundamentais, a Umbanda hoje anseia também por doutrina. O discernimento do trabalho é tão importante quanto ele próprio, de maneira tal que só através do discernimento, estaria ela, Umbanda, também em compasso com a evolução.


Link para o artigo 2: http://bregaccc.blogspot.com.br/2017/01/o-fetiche-na-primeira-e-na-nova-umbanda.html?m=1