quinta-feira, 9 de junho de 2016

A remissão dos pecados e o "vale-consciência"


Há uma premissa de culpa no modo como vivemos. Ela nos compele à busca de remissão. Os pecados nas suas várias acepções e densidades travam os passos da consciência, que mesmo leviana, custa a se livrar de uma auto censura que incomoda e perturba. Nesse contexto, a religião se apresenta como forma de lavagem dessas cismas, um trajeto de libertação, pelo qual é possível se sentir livre para viver, quites com o sagrado e com a própria consciência.
 O discurso religioso perpassa a ideia da redenção como linha condutora da "re-ligação" do homem e do sagrado, de maneira tal que é intrínseco aos seus dogmas e ritos o trabalho a ser realizado para se ver livre de débitos morais. A ideia de remissão subentende uma conversão moral profunda, tal como uma correção de rota, no que tange a postura em relação à vida, a sociedade e aos atos que aqui se realizam em responsabilidade. Essa reformulação exige, daquele que se compromete religiosamente, dedicação proporcional aos débitos que pretende redimir. Religar-se com o sagrado torna-se aí tarefa não meramente protocolar, mas de revisão densa, tempo que nem todos estão dispostos a doar.
Qual a solução? Preciso me redimir, mas como é praxe na natureza humana, quero alcançar esse livramento da maneira mais simples possível, e com menor esforço. Como farei?
Entendendo a necessidade do homem de ser prático, a construção do discurso religioso dispõe brechas, para que através do cumprimento ritual se esteja em dia com o divino, livre da repreensão moral, ao mesmo tempo em que se resguarda tempo e vontade para outras dedicações menos nobres. A essas brechas chamo aqui de “vale – consciência”, presentes de forma variada em um apanhado considerável de religiões, muito embora em algumas, causem mais polêmica e estranheza que em outras.
Assumindo os cultos afro-brasileiros como um grande segmento religioso, observa-se com naturalidade como a substituição da remissão verdadeira pelos “vale – consciência” se desenvolve. Através do rito, na manipulação das ervas, de elementos da terra, e de toda a magia ali compreendida, é possível por meio de um banho de folhas estar em sintonia com o sagrado, e assim quites com suas obrigações. É rotineiro que se visitem templos de culto afro-brasileiro em busca de uma solução rápida para suas contendas, de um estalar de dedos que faça com que tudo aconteça, ou de um amuleto que livre do mal e de suas perseguições.
A praticidade da oferta gera demanda, numa lógica que flerta sempre com a do mercado. O comércio de “vale – consciência” é uma realidade, vívida e regente. Há quem assuma esse comércio de forma declarada, quem cobre valores materiais para satisfazer a necessidade de outrem em ter seus problemas resolvidos, ou sua consciência aliviada. Há quem o faça de forma velada, mas ainda assim nítida. Não seria a oferenda na casa de santo ao orixá guardião uma forma de ter parte dos débitos quitados? Não seria o amuleto comercializado, mesmo a baixo custo, na Umbanda, um modo de oferecer de forma prática, alívio aos mal feitos? A religião atende ao homem naquilo que ele mesmo requer. E por assim dizer, não há culpa nela, e sim na maneira como a vemos.
Nos templos protestantes, causa indignação a alguns a forma como a circulação de dinheiro e bens norteiam o compromisso com o sagrado. A verdade, é que tal como os ritos nas casas de santo, ou terreiros de Umbanda, aqui também se encontra apenas um meio de ter os pecados redimidos de forma prática e indolor. Se doando ao meu templo compromissos financeiros mensais me mantenho em dia com Deus e com meus pecados, por que não? Afinal, é apenas dinheiro, e não há nada mais prático que ele.
É, portanto, incompreensível ter para com esta prática menor consideração, ou mesmo destiná-la de prévio à corrupção. A corrupção que envolve ou não a administração dessas quantias não serve de justificativa para desqualificá-las, uma vez que são apenas a reprodução da vontade humana de conforto, facilidade e menor esforço.
É bom que se diga que esse mesmo grosso religioso oferece em seu cerne meios reais para assimilação da verdadeira redenção, da conversão moral e da vida honesta. Os ritos ou métodos apenas aparecem como paliativos ou introduções a um caminho de vida em comunhão com o divino. Não há redenção moral sem esforço verdadeiro, sem lapidação incessante, encarando a si mesmo em suas chagas, ainda que doa.