terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Sobre ética e as câmeras escondidas: não vale tudo



Lembro das aulas de ética quando estudante de comunicação. Já sabia interessante a reflexão sobre os atos, suas consequências, o limite que os valores adequados da profissão lhe impõem. Com as mãos no queixo para pensar a sociedade hoje, vejo que o interessante tornou-se cura. Estamos perdidos quanto aos limites da razão, a despeito da obrigação coletiva em saber, falando em comunicação, da sua ética.

Das aulas de ética, lembro do intenso debate sobre fatos como a utilização de câmeras escondidas na produção e apuração de notícias. Era importante determinar que a privacidade alheia não se aliena às nossas intenções, ainda que essas possam ser defendidas pelos fins a que se dedicam. O bem que se pretende atingir deve ser medido e pesado, comparado e polido; em resumo, não é trunfo apenas por ser.

A filosofia entende a ética como um ramo prolífero de estudos. Não é aqui que vamos de alguma forma esgotá-lo, mas, para ajudar no trajeto que esse texto pretende, apenas pontuo algo sobre esse conhecimento. A ética se apresenta como uma pergunta. Como devo agir? Difere, assim, da moral, que se apresenta como regra. “Não devo agir assim”. O esquema simples, porém brilhante, pertence a Deleuze, e nos ajuda a compreender os meandros dos dilemas que temos cotidianamente.

A conclusão sobre o uso de câmeras escondidas, que em certo período do jornalismo tornou-se viral, foi retumbante quanto a sua restrição a casos extremos, muito específicos, sob pena de tornar-se inútil por infringir a orientação ética básica de respeito ao indivíduo e à sua privacidade. Reportagens que recorriam a essa tática, especialmente na TV, se utilizavam de recursos gráficos para em último ato proteger a identidade de pessoas que não autorizaram o uso de sua imagem. Sempre foi uma pauta controversa.

Fora das salas de aula, observo com estranheza e preocupação a prática que se popularizou, em sentido estrito, de gravar pessoas através do celular, enquanto essas não o sabem. Em regra, uma armadilha.

Recentemente, recebi em vídeo, a gravação do ex-presidente do Cruzeiro, Wagner Pires de Sá, sendo perguntado por um cidadão sobre temas do clube. Naturalmente, não sabia que estava sendo gravado. O cidadão o fez em rapina. Wagner disse coisas que tem valor de notícia, por se referirem a pessoas de contexto importante no clube de futebol, e o vídeo tornou-se pauta dos principais veículos do país.

Semanas antes, havia sido o presidente do Atlético, Sérgio Sette Câmara, que durante um vôo, teve uma fala gravada, que retirada de contexto, depois se publicou em redes sociais. As redes sociais merecem um longo debate, mas não agora, porque estamos sobre o alicerce.

Preocupa - e esses são apenas dois exemplos de outros tantos - a multiplicação desse comportamento na sociedade. Constrói-se no estado policialesco, na noção pávida e cruel do punitivismo e do revanchismo, arvorando o cúmulo das nossas doenças sociais contemporâneas, o espetáculo. Afastado o bom senso, tudo vira motivo para a escalada das redes, o desejoso topo dos influenciadores, a nata do nada.

Não importa quem seja, e o que venha a dizer. Nada dá o direito a alguém de através de um ardiloso plano, gravar às escondidas outra pessoa, para depois expô-la, em redes sociais e afins. É errado. É antiético. E é crime. Retomando a noção de bem, pela qual perpetua o direito, não se pode deixar de argumentar que a privacidade, o direito de imagem, o direito de personalidade não pode ser violado pela intenção duvidosa de quem quer que seja, especialmente ansioso por holofote e confete. É errado. Ultrapassa os limites da razão, e nos torna pessoas ruins.

Precisamos voltar a pensar no “como agir?”, tal qual a necessidade de saber o que ofende, o que está além do aceitável, o que é cruel e maléfico ao coletivo. Viver em sociedade é entender esses limites. Seja no mundo real ou, principalmente, no virtual, no qual se projeta de forma insistente o pior de nós.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

8/24: Dear Mamba


“E o outro ala, pela última vez o número 24 em quadra, 18 vezes All-Star, terceiro maior cestinha da história da NBA, 5 vezes campeão da NBA, Kobe Bryant...”  

O locutor foi sucinto. Era a última vez que Kobe saia dos túneis do Staples Center. Despedia-se em quadra do basquete. De súbito, me senti órfão, como se dali por diante um imenso vazio se aplacasse sobre o esporte que pratiquei e pelo qual ainda sou encantado. Durante anos, torci por Kobe, pelo seu sucesso, pelas suas vitórias, pelas suas jogadas e conquistas, como um admirador daquilo que de mais perfeito se viu nas quadras desde MJ. 
Foi em 2000, e registro a data após pesquisa, no dia 04 de junho, que tive meu alumbramento por Kobe. Era o jogo 7 das finais de conferência daquele ano. Os Lakers perdiam por muito, e a derrota significaria serem eliminados em casa. Descrevo a cena no éter que a tenho, sob o risco de o vídeo me trair a poesia:
Kobe recebe a bola ainda na quadra defensiva. Arma o time. Na marcação, Pippen, um dos maiores jogadores da NBA, ainda que em fim de carreira. Kobe balança na lateral, e ganha a cabeça da quadra. Minha impressão é de que ele irá definir. Na jogada anterior, tinha feito o mesmo movimento, e acertado um jump daquela posição. Por um segundo, ele parece fazer uma indicação ao companheiro, pedindo um bloqueio. Era uma armadilha. Seus olhos estavam no fundo-quadra, do lado oposto.
 Ele aplica um crossover, drible muito popular hoje, sobre Pippen, e invade o garrafão. Três jogadores na sua escolta. Pippen tentando se recuperar, e outros dois fechando o seu arremesso, daquela posição, fatal. Kobe salta, todos pensam ser uma repetição da jogada anterior. Com um movimento de pulso, ele flutua a bola, sem giro, na direção do aro. Do fundo, Shaq sozinho finaliza a jogada com uma ponte aérea. Era o que Kobe planejava desde o começo, e que ninguém mais, além do próprio Shaq, conseguira perceber. 
 A icônica jogada é até hoje lembrada nos melhores momentos da liga. É de fato uma cena de brilhantismo ímpar. Mas não foi a genialidade daquele basquete que me chamou atenção, a ponto de me encantar para sempre. Foram os instantes após. Shaq sai em disparada comemorando efusivamente. Abria os braços enormes tão em êxtase quanto a torcida enlouquecida. Na corrida, a câmera o filma passando por Kobe.
Lá estava ele: expressão taciturna, voltando de costas para a quadra de defesa, observando o adversário no fundo-quadra. Não desviava o olhar. Os companheiros se abraçando e já comemorando a possível vitória épica. Kobe em outro universo. Ainda faltavam cerca de 40 segundos no cronômetro. A mente de Kobe se preocupava com o que ainda poderia acontecer. Uma concentração inabalável. A realidade daqueles, poucos, e raros, que vislumbram o jogo em um tempo diferente, futuro, em repetido déjà vu. 
Aquele olhar. Morteiro e sem trégua. Reto, sem desvio. Subjugador e confiante. Era o modo como demonstrava que ninguém ali lutaria mais pela vitória que ele. O olhar dos que fascinam a vitória pelo suor incessante de seu rosto. O olhar do campeão.
A mim, foi como o condão que nos faz criar laços com o intangível, o encanto inexplicável por aquilo que lhe representa o sonho, a coisa que te leva para outro lugar fora do fastio da realidade. O ídolo. Eu o via como uma referência de amor ao esporte, e mais além, de coisas outras que transpõem essa fronteira.
Era um homem belo, e me lembro de reconhecê-lo assim. E que não se subestime o que é para um garoto da periferia, sem muitos recursos, achar em um personagem tão icônico semelhanças físicas consigo mesmo, e por isso reconhecer também em si alguma beleza. A TV pálida, de heróis de pele clara, criados a partir de um estereótipo que jamais alcançaria. O conceito hegemônico de belo que oprime e segrega. Kobe me ajudou a superar essa barreira. Eu queria ser como ele.
Era extremamente inteligente. Poliglota, falava espanhol e italiano fluentemente. O modo como se relacionava e falava de outras culturas mostrava seu interesse para além do ícone americano. Essa característica, sem dúvida, colaborou para que ele, diferente de outros grandes das ligas americanas, alcançasse outro patamar em lugares nos quais nem sempre havia empatia por seu país. Foi o respeito de Kobe pelo basquete europeu que transformou a visão da liga pelos jogadores daquela praça, o que acabou também por transformar a própria NBA.
Seu sucesso nas quadras e o modo como lidava com o jogo eram mais do que inspiração, uma reiterada cobrança para que também me superasse. A ideia “mamba” era (e ainda é) sempre considerar o próximo passo. Nunca estagnar. Sempre evoluir. Como se fosse o primeiro dia. Como se fosse o começo de tudo.
Recordo um episódio ligeiramente recente, durante a penúltima temporada de Kobe com os Lakers, que exemplifica o que digo e do qual tirei grandes lições:
O time era ruim, e muito jovem. Estava mal, perdendo jogos seguidos, e Kobe, naturalmente, chateado. Não com as derrotas, mas pelo ritmo dos treinos. Certa manhã, muito cedo - era sempre o primeiro a chegar – os jogadores aqueciam e conversavam para iniciarem as atividades. Kobe demonstrando pouco humor começou a questionar os sorrisos e o atraso. Com o treino em andamento, pressionava os companheiros, em tom ríspido. Questionado, respondeu: “Se vocês não precisam melhorar, eu preciso. Preciso treinar”.
“Preciso treinar” passou a ser um dos meus lemas. Sempre precisamos melhorar, nos superar, em tudo.
Ao fim da carreira em quadra, achei que ficaria órfão dos talentos de Kobe. Ele me surpreendeu novamente. Primeiro, com um programa para TV muito inovador, “Detail”, em que analisava vídeos destrinchando o que acontecia na quadra com uma maestria sem igual.
 Depois, com a animação que roteirizou, narrou, e construiu o argumento, a partir do poema que escreveu na sua despedida do basquete. Uma coisa linda, repleta de sensibilidade, e de uma cadência emocionante, da qual nem o mais duro coração é impassível. Chorei no Oscar. Chorei.
Chorei nas reprises. Nas homenagens. Chorei ao lembrá-lo falando sobre as filhas. De Gigi acertando arremessos enquanto treinavam. Chorei.
Ainda tenho Kobe em um lugar especial na minha estrutura como sujeito nesse mundo. De preconceitos, discriminações, de ódio e desigualdade. Kobe está na outra parte, a do respeito, da inteligência, do amor, da dedicação, da superação, do talento, do trabalho, da vontade de seguir adiante.
Tive um sonho com Kobe. Ou talvez não fosse sonho. Talvez tenha fechado os olhos para lembrar, como uma fantasia que se quer reviver. As luzes se apagavam, e flashes apontavam para o túnel que leva para a quadra. O locutor anunciava:
“O ala, com os números 8 e 24, medindo 1,98 m, 5 vezes campeão da NBA, 2 vezes MVP das finais, uma vez MVP da temporada, 2 vezes cestinha da liga, 18 vezes All-Star, 4 vezes MVP do All-Star Game, 15 vezes no time ideal da NBA, 12 vezes no time ideal de defesa da NBA, 1 vez campeão do torneio de enterradas, 4º maior cestinha da história da NBA, o bicampeão olímpico, o vencedor do Oscar de melhor curta de animação, o eterno, o único, Kobe Bryant.” 

Para sempre Dear Black Mamba.