Há muito unir palavras e melodias no casamento da canção não se dá da mesma forma. As novas tecnologias de reprodução, a globalização e a multiplicidade pós-moderna mudaram as perspectivas da música, seus atributos e funções, criando réplicas de uma arte se não extinta, fadada ao resumo. A música não é mais artesanal. Integrou-se a uma indústria cultural que a determina, seleciona e compõe. A música brasileira, por exemplo, é quadro permeado destas mudanças, sendo possível enxergá-las claras nas novas gerações de compositores e seus produtos mercadológicos.
Nem sempre foi assim. A música primordial brasileira era intensa, verdadeira e sensível em todas as suas expressões, populares ou não. Comparar passado e presente é tarefa por vezes inadequada, uma vez que se eximem da análise as diferentes condições dos tempos, mas ainda assim confrontá-los determina os rumos e desvios da história. Assim sendo, ao ouvir as novas produções culturais do meio, não há como não pensar em como elas desconsideram a gênese da MPB e seus mestres como Villa-Lobos, intelecto genial e ser humano diplomata, capaz de promover intercâmbio entre bares e salas de recitais, possibilitando através desta união a aparição em cenário nacional de nomes como o de Pixinguinha, que graças à iniciativa de Heitor e a explosão moderna de 1922, viu seu “Carinhoso” ganhar o Brasil e ser aceito. Impossível não lembrar este passado e achar desrespeitoso o presente, quando o popular é popularesco e se restringe a isso.
Justiça feita, ainda há aqueles que relevam a densidade musical. Tentam imprimir a ela uma dualidade que atenda a sua expressão artística e também ao mercado. A esses operadores do “Double Code” paira o infame rótulo de “alternativos”, considerando-se “alternativa” a música artesanato e não manufaturada, quando o certo seria justo o contrário. Apesar de válida esta opção dualista é impossível, já que a confluência existe, mas não em paridade. O mercado sempre pesa mais. Vender ou satisfazer a alma? É possível negar a sedução do estrelato e da fama? Falar o que é preciso ou o que querem ouvir? A resposta é óbvia. Está nas prateleiras, nas raras lojas de CDs, no mercado fonográfico e na avalanche da internet. Ter um “hit” é realizar-se, ainda que por 15 minutos, tempo mais que suficiente para que o que a pouco era novidade, tornar-se obsoleto.
Não se pode apontar apenas um culpado para a degradação dos conceitos como o de música que vivemos. Trata-se de uma conjuntura de fatores. O pós-modernismo deu a sua colaboração, promulgando a liberdade de subjetivação, a multiplicidade de gêneros e a promiscuidade do gosto. A globalização injetou parâmetros culturais alheios, principalmente norte-americanos, fazendo nascer os cultos às celebridades instantâneas e o vício da fama, além de reafirmar os conceitos capitalistas associados também a cultura. A tecnologia e a capacidade de reprodutibilidade fizeram perder-se no éter do esquecimento a “aura” da obra artística, alerta dado por Benjamin e Adorno e confirmado nos tempos atuais, nos quais não há barreiras para se possuir o conteúdo que se deseja, sendo possível portanto, escolher o que de cada compositor se quer ouvir, em uma seleção que tende ao que é tido como sucesso pelo julgamento midiático. Georg Simmel, sociólogo alemão, caracteriza o indivíduo de metrópole como racional, regido por uma dinâmica que não o permite ter com o universo que lhe rodeia uma relação íntima e visceral. Contudo, conclui-se que o produto de seu intelecto, como ele, também o seja e isso também é fator relevante na conjuntura causal da decadência da música. A candura conservou-se apenas no interior, em cidades menores, das quais os filhos compositores ainda são capazes de atingir o sentimento.
Todas estas mudanças nas diretrizes da produção artística, em especial a musical, tem conseqüências não só no que diz respeito à arte, mas também no comportamento social. Em recente documentário sobre o festival da canção da TV Record de 1967, Edu Lobo, ganhador do concurso com a obra “Ponteio”, disse que o grande gancho das canções e o que as fazia vitoriosas eram as críticas subliminares a ditadura e a repressão. Era preciso habilidade e capacidade para produzir uma canção que fosse verdadeira e competitiva. Eram tempos de estudantes ativos e de luta contra o fantasma militar. Caso hoje houvesse um festival parecido, quais seriam os temas? Qual seria a receita de uma canção vitoriosa? Certamente não teriam temas políticos, tão pouco tangeriam as verdades da essência humana, como Chico Buarque em “Roda Viva”. A verdade é que à medida que a densidade das canções se esvaiu, e o mimismo tornou-se pressuposto de sucesso, também nos jovens e naqueles a quem a música influencia decaiu o desejo por uma música engajada, capaz de falar , ainda que com simplicidade, do âmago humano. Hoje os temas se restringem a sexualidade (que sempre foi objeto de arte, mas não de forma exclusiva) ou aos dramalhões românticos, que tem seu valor, mas não o mesmo de antes, já que se repetem. Zuza Homem de Mello, musicólogo e crítico musical dos mais respeitáveis, perguntado sobre o que as gerações futuras ouvirão, responde: “Ora, os grandes e eternos compositores brasileiros, como sempre. Não pense que eles trocarão o Chico ou o João pelo Zezé ou pelo Fiuk”. De fato, como construíram sua história sobre estrutura frágil, feito areia à beira-mar, muitos dos novos serão esquecidos. A pena é que, neste passo, certamente serão substituídos por outros, à procura de fama e dinheiro. E a verdadeira música? Jaz em paz nos braços dos mestres...