sábado, 21 de agosto de 2010

O que há com a música?


Há muito unir palavras e melodias no casamento da canção não se dá da mesma forma. As novas tecnologias de reprodução, a globalização e a multiplicidade pós-moderna mudaram as perspectivas da música, seus atributos e funções, criando réplicas de uma arte se não extinta, fadada ao resumo. A música não é mais artesanal. Integrou-se a uma indústria cultural que a determina, seleciona e compõe. A música brasileira, por exemplo, é quadro permeado destas mudanças, sendo possível enxergá-las claras nas novas gerações de compositores e seus produtos mercadológicos.
Nem sempre foi assim. A música primordial brasileira era intensa, verdadeira e sensível em todas as suas expressões, populares ou não. Comparar passado e presente é tarefa por vezes inadequada, uma vez que se eximem da análise as diferentes condições dos tempos, mas ainda assim confrontá-los determina os rumos e desvios da história. Assim sendo, ao ouvir as novas produções culturais do meio, não há como não pensar em como elas desconsideram a gênese da MPB e seus mestres como Villa-Lobos, intelecto genial e ser humano diplomata, capaz de promover intercâmbio entre bares e salas de recitais, possibilitando através desta união a aparição em cenário nacional de nomes como o de Pixinguinha, que graças à iniciativa de Heitor e a explosão moderna de 1922, viu seu “Carinhoso” ganhar o Brasil e ser aceito. Impossível não lembrar este passado e achar desrespeitoso o presente, quando o popular é popularesco e se restringe a isso.
Justiça feita, ainda há aqueles que relevam a densidade musical. Tentam imprimir a ela uma dualidade que atenda a sua expressão artística e também ao mercado. A esses operadores do “Double Code” paira o infame rótulo de “alternativos”, considerando-se “alternativa” a música artesanato e não manufaturada, quando o certo seria justo o contrário. Apesar de válida esta opção dualista é impossível, já que a confluência existe, mas não em paridade. O mercado sempre pesa mais. Vender ou satisfazer a alma? É possível negar a sedução do estrelato e da fama? Falar o que é preciso ou o que querem ouvir? A resposta é óbvia. Está nas prateleiras, nas raras lojas de CDs, no mercado fonográfico e na avalanche da internet. Ter um “hit” é realizar-se, ainda que por 15 minutos, tempo mais que suficiente para que o que a pouco era novidade, tornar-se obsoleto.
Não se pode apontar apenas um culpado para a degradação dos conceitos como o de música que vivemos. Trata-se de uma conjuntura de fatores. O pós-modernismo deu a sua colaboração, promulgando a liberdade de subjetivação, a multiplicidade de gêneros e a promiscuidade do gosto. A globalização injetou parâmetros culturais alheios, principalmente norte-americanos, fazendo nascer os cultos às celebridades instantâneas e o vício da fama, além de reafirmar os conceitos capitalistas associados também a cultura. A tecnologia e a capacidade de reprodutibilidade fizeram perder-se no éter do esquecimento a “aura” da obra artística, alerta dado por Benjamin e Adorno e confirmado nos tempos atuais, nos quais não há barreiras para se possuir o conteúdo que se deseja, sendo possível portanto, escolher o que de cada compositor se quer ouvir, em uma seleção que tende ao que é tido como sucesso pelo julgamento midiático. Georg Simmel, sociólogo alemão, caracteriza o indivíduo de metrópole como racional, regido por uma dinâmica que não o permite ter com o universo que lhe rodeia uma relação íntima e visceral. Contudo, conclui-se que o produto de seu intelecto, como ele, também o seja e isso também é fator relevante na conjuntura causal da decadência da música. A candura conservou-se apenas no interior, em cidades menores, das quais os filhos compositores ainda são capazes de atingir o sentimento.
Todas estas mudanças nas diretrizes da produção artística, em especial a musical, tem conseqüências não só no que diz respeito à arte, mas também no comportamento social. Em recente documentário sobre o festival da canção da TV Record de 1967, Edu Lobo, ganhador do concurso com a obra “Ponteio”, disse que o grande gancho das canções e o que as fazia vitoriosas eram as críticas subliminares a ditadura e a repressão. Era preciso habilidade e capacidade para produzir uma canção que fosse verdadeira e competitiva. Eram tempos de estudantes ativos e de luta contra o fantasma militar. Caso hoje houvesse um festival parecido, quais seriam os temas? Qual seria a receita de uma canção vitoriosa? Certamente não teriam temas políticos, tão pouco tangeriam as verdades da essência humana, como Chico Buarque em “Roda Viva”. A verdade é que à medida que a densidade das canções se esvaiu, e o mimismo tornou-se pressuposto de sucesso, também nos jovens e naqueles a quem a música influencia decaiu o desejo por uma música engajada, capaz de falar , ainda que com simplicidade, do âmago humano. Hoje os temas se restringem a sexualidade (que sempre foi objeto de arte, mas não de forma exclusiva) ou aos dramalhões românticos, que tem seu valor, mas não o mesmo de antes, já que se repetem. Zuza Homem de Mello, musicólogo e crítico musical dos mais respeitáveis, perguntado sobre o que as gerações futuras ouvirão, responde: “Ora, os grandes e eternos compositores brasileiros, como sempre. Não pense que eles trocarão o Chico ou o João pelo Zezé ou pelo Fiuk”. De fato, como construíram sua história sobre estrutura frágil, feito areia à beira-mar, muitos dos novos serão esquecidos. A pena é que, neste passo, certamente serão substituídos por outros, à procura de fama e dinheiro. E a verdadeira música? Jaz em paz nos braços dos mestres...

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Brasil adulto

Nascemos vira-latas, filhos bastardos de uma colonização inoperante, criados ao sol e aprendendo a cabresto as lições da vida. Somos marginais, letrados na arte do jogo de cintura e da maracutaia, jeitinho que arredonda a vida e preenche as lacunas dos deficientes padrastos que nos foram dados.
Por crescer assim, sem limites, sem eira nem beira, menino homem que se criou só, o Brasil conserva em si uma anarquia de praia, uma alegria inconsequente, que só agora, pouco a pouco, vai sendo suprimida pelas responsabilidades da nova fase madura. Passamos pela adolescência colonial e pré-democrática e agora, aos 510 anos, somos recém postulantes a fase adulta, na qual já não cabem as volúpias de outrora. O tempo, a vida e as pedras, nos ensinaram os caminhos da harmonia e do equilíbrio. Criamos responsabilidades, construímos a nossa casa aos moldes democráticos e hoje podemos dizer que temos um futuro.
É certo que ainda não somos autosuficientes. Vez ou outra os antigos demônios nos perseguem, e tentam como cupins corroer as vigas que a duras penas erguemos. Mas desespero, já não se tem. Ainda que os tombos venham e deixem suas marcas, aprendemos cedo que cair é da capoeira, e se levantar é do vencedor. No fundo, acho mesmo é que aprendemos a ser otimistas e jamais perder as esperanças. O que não admira, pois se assim não fosse, teríamos sucumbido à ação cruel do destino. Olhar para o Brasil moderno é verificar um homem, que já não depende de heróis. Sugou deles a fibra e o caráter e pretende por si só caminhar rumo aos seus objetivos.

Por vezes descriminado, subjugado e deixado em segundo plano, hoje já se pode ouvir da boca brasileira suas próprias opiniões. Ainda lentas, murmuradas, em formação, mas próprias. Democracia para dentro e para fora, conceito que aos poucos se assimila. Ao passar as mãos sobre a derme histórica deste gigante varonil, é impossível não notá-la as cicatrizes. Elas existem e os monstros também. Olhá-las nos encoraja e não assusta. Encará-los talvez nos assuste, mas alerta. Já somos grandinhos, homenzinhos feitos. O tempo do medo ficou pra trás.

No coletivo.



Dias incontáveis da vida se decorrem dentro de um lotação, fica inevitável - até matemático - a contabilidade de inúmeras aventuras. Aventuras por vezes efêmeras, promíscuas, mas não por isso menos marcantes, ainda que a marca se desfaça com um sopro leve do tempo.
Tomei o ônibus na mesma altura de sempre. O sol estava bravo. Sinal; escada; entrei. Com os olhos, busquei achar vazia a cadeira que mais gostava. Era no canto, logo atrás de uma placa de acrílico e nada convidativa a conversas, quase uma solitária, salvo apenas pelo fato de ser geminada a outra. Não sou dado a conversas em ônibus, prefiro olhar a rua (preferiria ler, mas me enjôo), olhar as pessoas, seus olhos que seguem o nada, seus corpos jogados na correnteza do cotidiano. O sacolejo, as paisagens, o cheiro de gente, a sinestesia que envolve o momento são convidativos a este tipo de reflexão. Sou mineiro, refletir é o que faço.
O ônibus para. Pessoas entram. E perdido entre o tudo e o nada sou incomodado e invadido por um perfume feminino doce-amadeirado, tradicional, mas com um “que” diferente, uma pitada maliciosa de “me procure” ”me olhe”, irresistível! Não olhei, tive medo de perder o pensamento.
O local ao meu lado continuava vago, para gozo de meu subconsciente que gostaria que ele assim permanecesse. Não permaneceu, tragédia! Sentou-se ao meu lado aquele perfume de base tradicional, mas provocativo, certamente característica dada a ele (lei do perfume) pela pele que o embebia. Era tão insinuante, tão malino, que não pude me furtar. Belisquei com o canto do olho aquela a quem ele pertencia. Foi um encanto. Sua pele era alva, de rosto cândido, cravejado por um par de esmeraldas. O cabelo feito em coque deixando à mostra a nuca - parte mais sensual da mulher - escorregando até o colo, decotado, exalando o frescor de fruta madura. Trajava um vestido moderno que alumbrava as pernas, torneadas sob medida, findando nos pés delicadamente calçados em leve sapatilha. Como era linda! Fui encurralado e tomado por devaneios. Aonde iria? O que faria? Como se chamava? Isabela talvez. Suas mãos delicadas repousavam sobre a perna. Como queria pegá-las, beijá-las. Não por amor, nem por paixão, o sentimento que me invadia era diferente, era desejo estranho por algo eterno, como semente que busca solo e atenção para crescer e florir.
Procurava por reflexos seus na placa de acrílico e na janela, à espera de mais detalhes. Ela se mantinha inerte. Acariciava os cabelos e bolinava o nariz. Com calor do era verão que transpassava a janela, deslizava a mão na nuca buscando por gotículas de seu néctar orvalhado. Eu, por minha vez, me eximia em posições e expressões que me mostrassem interessante. Passava a mão no queixo, arrumava o cabelo, ao aguardo que a pose a fizesse pensar: “Que rapaz galante, porque não falar com ele?”. Em vão. Ela continuava dura, abstrata, fria. Cheguei a cogitar a possibilidade de lhe falar, mas não havia por que. Não se tratava de falta de coragem, era questão de finalidade. Por que falaria com ela? Não conhecia se quer o nome (Carolina talvez). O que sabia a seu respeito era que sentia calor, tinha mania de balançar os pés (pude perceber o gesto durante toda viagem) e que era meiga, feita em charme, o que pude concluir a partir da visão de suas pernas cuidadosamente cruzadas, fato incomum e não inerente às mulheres contemporâneas, principalmente quando estão em coletivos. Mais nada. Que proposta teria eu para ela? E ela corresponderia a um “oi” despropositado? Pelo visto não.
Continuava lá, sem dar a mínima brecha. Revoltei-me com a situação. Inclinei-me a raiva. Tranquei o rosto transparecendo o mais sério possível. Como se ela não existisse, como se tudo que eu quisesse fosse chegar o mais rápido possível (mentira). Devolvia neste instante o descaso com descaso. Não daria bandeira. Pena; fraco, falhei. Ocorre que a curva era muito fechada, e levemente seu braço se chocou com o meu, seguido o acidente de um augusto: ”Perdão”. Não houve meios, tive que perdoar. Sua voz era tão cálida, tão cautéria, que travou minha língua e pescoço. Apenas pasmo, bobo e ridículo acenei com a cabeça, querendo dizer: ”não por isso”. Estava perdido, havia desperdiçado chance imensurável de dar vazão ao avassalador sentimento, quem sabe arar a terra para a semente. Não o fiz. Sobrou-me então uma última chance, a última cartada: o desembarque.
Preparei-me mentalmente para o evento. Pensei em alguns galanteios, para dizer-lhe na hora de lhe pedir licença para sair do banco. ”Desculpe-me incomodar Dalva estrela, seu encanto é viciante, mas devo descer, poderia dar-me licença?” “Por favor, lindo querubim, eu bem que não gostaria, mas vou ter que descer e assim correr o risco de não ver-te mais, ainda sim, deixe-me passar?”. A segunda ganhou. Arrumei as sobrancelhas, molhei os lábios (sempre molhamos quando queremos parecer sensuais), tomei ar, ensaiei mais uma vez na mente o galanteio e fui. Virei em sua direção. Foi fatal. Não suportei. Meus olhos encontraram os seus como se o tivessem feito com os da própria Medusa. Fiquei petrificado. Pálido. Não tive reação. Restou-me apenas um resquício lúcido de cuspir (acho até que com saliva) atabalhoadamente um “cença”. Assim mesmo, comprimido, tremulo, intimidado.
Levantei. Dei sinal. Ela curvou-se para o lado. Pude notar pela última vez suas pernas e a sombra de seu nariz fino e delicado. Caminhei até a porta. Saltei. Busquei o fôlego uma, duas, três vezes. Pronto. Descerra-se a bandeira do amor. É hora de bater ponto. Fui.