Dias incontáveis da vida se decorrem dentro de um lotação, fica inevitável - até matemático - a contabilidade de inúmeras aventuras. Aventuras por vezes efêmeras, promíscuas, mas não por isso menos marcantes, ainda que a marca se desfaça com um sopro leve do tempo.
Tomei o ônibus na mesma altura de sempre. O sol estava bravo. Sinal; escada; entrei. Com os olhos, busquei achar vazia a cadeira que mais gostava. Era no canto, logo atrás de uma placa de acrílico e nada convidativa a conversas, quase uma solitária, salvo apenas pelo fato de ser geminada a outra. Não sou dado a conversas em ônibus, prefiro olhar a rua (preferiria ler, mas me enjôo), olhar as pessoas, seus olhos que seguem o nada, seus corpos jogados na correnteza do cotidiano. O sacolejo, as paisagens, o cheiro de gente, a sinestesia que envolve o momento são convidativos a este tipo de reflexão. Sou mineiro, refletir é o que faço.
O ônibus para. Pessoas entram. E perdido entre o tudo e o nada sou incomodado e invadido por um perfume feminino doce-amadeirado, tradicional, mas com um “que” diferente, uma pitada maliciosa de “me procure” ”me olhe”, irresistível! Não olhei, tive medo de perder o pensamento.
O local ao meu lado continuava vago, para gozo de meu subconsciente que gostaria que ele assim permanecesse. Não permaneceu, tragédia! Sentou-se ao meu lado aquele perfume de base tradicional, mas provocativo, certamente característica dada a ele (lei do perfume) pela pele que o embebia. Era tão insinuante, tão malino, que não pude me furtar. Belisquei com o canto do olho aquela a quem ele pertencia. Foi um encanto. Sua pele era alva, de rosto cândido, cravejado por um par de esmeraldas. O cabelo feito em coque deixando à mostra a nuca - parte mais sensual da mulher - escorregando até o colo, decotado, exalando o frescor de fruta madura. Trajava um vestido moderno que alumbrava as pernas, torneadas sob medida, findando nos pés delicadamente calçados em leve sapatilha. Como era linda! Fui encurralado e tomado por devaneios. Aonde iria? O que faria? Como se chamava? Isabela talvez. Suas mãos delicadas repousavam sobre a perna. Como queria pegá-las, beijá-las. Não por amor, nem por paixão, o sentimento que me invadia era diferente, era desejo estranho por algo eterno, como semente que busca solo e atenção para crescer e florir.
Procurava por reflexos seus na placa de acrílico e na janela, à espera de mais detalhes. Ela se mantinha inerte. Acariciava os cabelos e bolinava o nariz. Com calor do era verão que transpassava a janela, deslizava a mão na nuca buscando por gotículas de seu néctar orvalhado. Eu, por minha vez, me eximia em posições e expressões que me mostrassem interessante. Passava a mão no queixo, arrumava o cabelo, ao aguardo que a pose a fizesse pensar: “Que rapaz galante, porque não falar com ele?”. Em vão. Ela continuava dura, abstrata, fria. Cheguei a cogitar a possibilidade de lhe falar, mas não havia por que. Não se tratava de falta de coragem, era questão de finalidade. Por que falaria com ela? Não conhecia se quer o nome (Carolina talvez). O que sabia a seu respeito era que sentia calor, tinha mania de balançar os pés (pude perceber o gesto durante toda viagem) e que era meiga, feita em charme, o que pude concluir a partir da visão de suas pernas cuidadosamente cruzadas, fato incomum e não inerente às mulheres contemporâneas, principalmente quando estão em coletivos. Mais nada. Que proposta teria eu para ela? E ela corresponderia a um “oi” despropositado? Pelo visto não.
Continuava lá, sem dar a mínima brecha. Revoltei-me com a situação. Inclinei-me a raiva. Tranquei o rosto transparecendo o mais sério possível. Como se ela não existisse, como se tudo que eu quisesse fosse chegar o mais rápido possível (mentira). Devolvia neste instante o descaso com descaso. Não daria bandeira. Pena; fraco, falhei. Ocorre que a curva era muito fechada, e levemente seu braço se chocou com o meu, seguido o acidente de um augusto: ”Perdão”. Não houve meios, tive que perdoar. Sua voz era tão cálida, tão cautéria, que travou minha língua e pescoço. Apenas pasmo, bobo e ridículo acenei com a cabeça, querendo dizer: ”não por isso”. Estava perdido, havia desperdiçado chance imensurável de dar vazão ao avassalador sentimento, quem sabe arar a terra para a semente. Não o fiz. Sobrou-me então uma última chance, a última cartada: o desembarque.
Preparei-me mentalmente para o evento. Pensei em alguns galanteios, para dizer-lhe na hora de lhe pedir licença para sair do banco. ”Desculpe-me incomodar Dalva estrela, seu encanto é viciante, mas devo descer, poderia dar-me licença?” “Por favor, lindo querubim, eu bem que não gostaria, mas vou ter que descer e assim correr o risco de não ver-te mais, ainda sim, deixe-me passar?”. A segunda ganhou. Arrumei as sobrancelhas, molhei os lábios (sempre molhamos quando queremos parecer sensuais), tomei ar, ensaiei mais uma vez na mente o galanteio e fui. Virei em sua direção. Foi fatal. Não suportei. Meus olhos encontraram os seus como se o tivessem feito com os da própria Medusa. Fiquei petrificado. Pálido. Não tive reação. Restou-me apenas um resquício lúcido de cuspir (acho até que com saliva) atabalhoadamente um “cença”. Assim mesmo, comprimido, tremulo, intimidado.
Levantei. Dei sinal. Ela curvou-se para o lado. Pude notar pela última vez suas pernas e a sombra de seu nariz fino e delicado. Caminhei até a porta. Saltei. Busquei o fôlego uma, duas, três vezes. Pronto. Descerra-se a bandeira do amor. É hora de bater ponto. Fui.
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